Saudações, guerreiros da Luz
Falar sobre “códigos” e “honra” em D&D hoje pode soar quase alienígena, e ter o efeito de um Expulsar Mortos-Vivos sobre mestres e jogadores que começaram a jogar na pandemia. Para quem conhece RPG como ele é hoje, um jogo colorido repleto de poderes chamativos, nenhuma responsabilidade ou noção de consequência, códigos de honra são automaticamente vistos como algo estranho, retrógrado e restritivo. Em suma, algo que “atrapalharia” a campanha. A verdade, no entanto, está muito longe disso.
Códigos de honra são muito uteis na construção de um
personagem, e também para tornar mais interessante e verossímil elementos da
ambientação de um cenário. Em termos de personagens, esses códigos ajudam a dar propósito e profundidade. Fazendo uma breve
comparação entre Conan o Cimério e Grog Strongjaw, podemos ver claramente a
diferença. Conan possui um código de honra pessoal, mas
extremamente complexo. Grog age apenas por impulso e em busca de satisfazer desejos imediatos. Ambos podem ser considerados “bárbaros” em termos de
RPG, mas o código de honra pessoal de Conan o torna superior a todos os bárbaros
que foram criados na mídia nos últimos anos.
Em termos de ambientação, os códigos são úteis porque dão
identidade a uma ordem, religião ou mesmo todo um reino. Trabalhando em um
nível macro, códigos de honra são capazes de criar e fortalecer a cultura e
identidade de todo um povo, o que agrega um grau de verossimilhança que jamais
poderia ser obtido quando simplesmente categorizamos um reino como “rico em
magia”, “selvagem”, etc.
Felizmente em nosso mundo há vários exemplos de códigos
prontos que perduraram por séculos, ou até milênios, e que podem ser adaptados
ou integralmente aplicados em uma campanha. A título de exemplo, escreverei
aqui os pontos principais de um código árabe pré-islâmico utilizado até os dias
de hoje chamado Futuwwa (ou “futuwwah” no original), que utilizo como base para
a cultura de um reino desértico chamado K’Mar em minha ambientação chamada
Elgalor.
Futuwwa (do árabe futuwwah,
plural futuwwat) vem da raiz f-t-y (fata = jovem, rapaz) e designa — em sentido
histórico e ético — um ideal de virtude juvenil / “cavalaria” no mundo islâmico
medieval. Não é apenas coragem no campo de batalha: é um código de
comportamento social e moral que combina coragem física, generosidade,
hospitalidade, lealdade e piedade. Em diversas épocas e regiões esse ideal foi
institucionalizado por confrarias, e práticas urbanas que orientavam a conduta
de jovens guerreiros, artesãos e mercadores.
Valores centrais
- Generosidade (karam / jūd) — repartir comida, pagar dívidas dos
outros, proteger economicamente o necessitado; a generosidade é um traço que
confere prestígio moral.
- Hospitalidade (ḍiyāfa) — receber e proteger o viajante/estrangeiro;
abrir a casa e partilhar o que se tem, mesmo em dificuldades.
- Coragem e coragem controlada (shajāʿa + qūwa com disciplina) —
enfrentar perigos e defender a comunidade, mas com autocontrole; bravura
vinculada à responsabilidade.
- Paciência (hilm) — dominar a ira, evitar vinganças precipitadas;
mostrar domínio emocional é sinal de força.
- Lealdade e solidariedade (wafā / ukhūwa) — fidelidade ao grupo, ao
mestre, à tribo ou confraria; apoio mútuo entre os membros.
- Honra (sharaf) e reputação — proteger a própria honra e a dos
outros; agir de modo a não envergonhar a família ou a comunidade.
- Auto-sacrifício (ithar) — colocar o bem comum acima do interesse
próprio quando necessário.
- Piedade / consciência moral (taqwā) — integração de valores
religiosos: a prática ética é vista também como serviço a Deus.
- Competência profissional / artesanato — em muitas cidades futuwwa ligou-se a corporações e ofícios: ser bom no próprio ofício e honesto nos negócios fazia parte da virtude.
Função social
- Formação moral de
jovens: oferecia um caminho para que rapazes aprendessem autocontrole,
solidariedade e responsabilidade.
- Regulação da
violência e da honra: o código orientava como lidar com ofensas e conflitos —
idealmente evitando vingança desordenada e privilegiando moderação e justiça.
- Coesão urbana: as
confrarias futuwwa podiam funcionar como redes de assistência mútua,
estabilizando a vida social e econômica.
- Legitimação do uso da
força: sublinhava que o uso da força só é legítimo quando em defesa da
comunidade e dos valores morais.
Outro ponto positivo no uso de códigos de honra é que o RPG (ao menos o RPG que nós mais velhos aprendemos a jogar nos anos 80 e 90), dentre outras coisas, é algo que pode contribuir de forma muito positiva para o aprimoramento do caráter do próprio jogador. Diferente de hoje, em que o jogo é usado para exteriorizar comportamentos ruins, perversões e fortalecer o sentimento de vitimização, ele antigamente ajudava a entender valores como responsabilidade, causa e consequência, lealdade e sacrifício. Valores os quais nossa sociedade moderna carece terrivelmente, e que podem ser fortalecidos e evidenciados pelo uso de códigos de honra em nossas campanhas.

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