quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Criando bons personagens, e não avatares vazios

Saudações, guerreiros da Luz.

Compartilho aqui a adaptação de um dos pergaminhos que puderam ser salvos dos antigos Salões de Valhalla, uma vez que a reflexão trazida se faz ainda mais relevante agora do que na época em que fora escrito. 

Como todos devem concordar, boa parte da diversão em se jogar RPG está na construção de um bom personagem. Neste sentido, algo que ajuda muito a “dar vida” a um personagem são suas virtudes e defeitos. Aqui é importante compreender que esses dois conceitos são subjetivos (o que é considerado virtude em um ambiente pode ser um defeito em outro e vice-versa), mas que essa subjetividade de valores é algo que enriquece uma campanha. Quando criamos o devido espaço, conforme o personagem interage com seu meio, suas virtudes e defeitos começam a ficar mais fortes e evidentes. Nisso, o mesmo começa a realmente “evoluir”, e frequentemente, irá reanalisar comportamentos, conceitos e sua maneira de ver o mundo.

Muitas vezes, isso significa que o personagem abandonará características fortes que o definiam, para o bem ou para o mal. Em outras, que ele intensificará essas características e as abraçará como parte integrante de si, doa a quem doer. Mas de qualquer forma, ele não será o mesmo ao final de sua jornada. Isso em uma aventura de D&D de 10-20 anos atrás.

Hoje, no entanto, o grande problema que temos é que devido à histeria coletiva de turbas de desocupados e oportunistas corruptos, há "padrões" que precisam ser seguidos a risca, sob a pena de linxamento virtual por estar ofendendo alguma minoria, não estar sendo "sensível" à terrível dor imaginária de alguém e assim por diante. Nisso, se observamos os personagens e NPCs de aventuras recentes de D&D, notamos que não há homens de verdade, e as mulheres "fortes" são sempre burras e mal educadas. Personagens coloridos possuem salvo-conduto para fazer absolutamente qualquer coisa que desejarem, enquanto instituições que prezam pela ordem ou dignidade, como igrejas e exércitos, são sempre retatados como figuras obsoletas e opressivas. Não se cria mais personagens. Cria-se apenas panfletos ideológicos vazios e subversivos. Pior que isso, todos os "personagens" são meros avatares de seus jogadores, o que mostra o quão triste, e de certa forma patética, a situação ficou.

Apesar de hoje a "regra" de criação de personagens estar voltada para arquétipos rasos e "inclusivos", aqueles de nós que ainda jogam nas trilhas dos antigos mestres de D&D, ou ao menos aqueles que honram esse legado mesmo sem jogar, ainda buscam criar personagens verdadeiros, não meros avatares de si próprios. Para ilustrar um pouco a ideia, usarei como exemplo alguns personagens de uma antiga campanha que finalizei há cerca de quinze anos, na qual os mesmos (que pertencem ao mesmo grupo) foram do 1º ao 18º nível. 

 Os personagens em questão são:

ARAMIL, O SINCERO (Mago, Alto-Elfo, Leal e Neutro)

ASTREYA, A ESTRELA DO ALVORECER (Barda, Meio-elfa, Neutro e Boa)

OYAMA, O FLAGELO DAS FERAS (Monge Pugilista, Humano, Caótico e Bom)

* Todas as alcunhas foram se formando ao longo da campanha.


ARAMIL, O SINCERO:

Aramil era bastante inteligente, pragmático, focado e perspicaz. No entanto, ele era arrogante, e por considerar os elfos a “raça superior”, tem diversos comportamentos racistas e xenófobos, que, em sua visão, são meras observações da realidade, que qualquer criatura viva seria capaz de perceber se pensasse um pouco. No início de sua jornada (que foi imposta pelo rei dos elfos), ele possuía um cavalo e fazia questão de dizer a todos que o mesmo se chamava “Grummsh”. Quando perguntavam o motivo, ele explicava que era para demonstrar ao mundo que os elfos estavam sempre acima dos orcs. Depois de um contratempo bastante sangrento com orcs, o cavalo pereceu e Aramil decidiu que o mais sensato seria não nomear seu próximo cavalo. Mesmo assim, ele tratava seus companheiros com extrema condescendência; para o elfo, Astreya era uma criança tola e sentimentalista, e Oyama era pouco mais do que um primata que só faltava comer os próprios piolhos. Bons resultados obtidos pelo grupo eram smepre percebidos por Aramil como uma consequência direta de sua presença e “liderança’, mesmo em situações em que a ação do mago fora praticamente nula. Quando havia problemas, ele frequentemente dizia que a situação poderia ter sido evitada se mais elfos estivessem presentes. Nas raríssimas ocasiões em que tentava ser empático, ele simplesmente dizia ao demais que o fracasso não era culpa deles; eles estavam se esforçando, mas a própria inferioridade que nasceu com cada um os impedia de fazer algo melhor.

 

ASTREYA, A ESTRELA DO ALVORECER

Entre todos os membros do grupo, Astreya era a mais compreensiva, tolerante e amistosa. Ela sempre buscava ajudar da melhor forma que pudesse, e como era uma jovem de personalidade bem formada, nunca sentiu necessidade de provar seu valor, ou de recusar ajuda para “parecer uma mulher forte”. Ela sabia onde estavam suas forças, e se sentia satisfeita com isso. Quando situações explosivas ocorriam dentro do grupo, ela era sempre a apaziguadora, independente de como se sentia. Ela acreditava que todos mereciam uma segunda chance para aprender e fazer a coisa certa, e isso lhe dava uma enorme dose de paciência para lidar com todas as situações. As qualidades de Astreya, no entanto, acabavam por vezes sendo seus maiores defeitos; em mais de uma ocasião o grupo foi enganado por ajudar indivíduos com intenções sombrias ocultas, e nessas situações, a barda foi determinante para que a ajuda sempre fosse dada. Na ocasião mais grave, a simpatia e coração bom de Astreya facilitaram a entrada de um demônio disfarçado no coração do reino de Sírhion, o que resultou na morte do antigo monarca do reino élfico, Bremen Bhael, pai do futuro esposo da barda, Coran Bhael. Mesmo aprendendo com a experiência, ela nunca deixou seu coração endurecer. Isso geraria mais problemas, mas também resolveria uma quantidade imensa de outros. Astreya entendera que seu papel ali era o de unir o grupo, e a cada dia que terminava com todos em volta de uma fogueira, ela sabia que sua parte estava sendo feita.

 

OYAMA, O FLAGELO DAS FERAS

Oyama era um indivíduo extremamente obstinado e valente. Apesar de impulsivo e por vezes, inconsequente, ele dava grande valor a seus companheiros. Uma outra característica muito marcante do monge, que pode ser interpretada de diversas formas, é que ele não tinha qualquer preocupação com o que outros pensassem dele. Seja diante de um rei ou de um mendigo, seu comportamento era exatamente o mesmo, e o respeito que ele demonstrava às pessoas estava ligado unicamente a coisas que ele considerava importantes (força, esforço e lealdade), não títulos ou ostentações. Para Oyama, os minutos gastos em um riacho tomando um banho ou discutindo política poderiam ser usados para treinar mais seu corpo, o deixando mais forte e resistente, e ele realmente usava seu tempo dessa forma, tanto que mesmo em tavernas, era comum que se exercitasse ou provocasse uma “briga amistosa” caso houvesse algum oponente de valor no local. Como monge, ele se recusava a usar qualquer tipo de arma ou proteção, e foi apenas depois de ter os dois braços quebrados em um combate contra um gigante que permitiu que Hargor (o anão clérigo do grupo) forjasse um par de manoplas de combate para ele. Como Aramil frequentemente observava, Oyama realmente não cheirava bem, e o hábito do monge em guardar restos de comida na barba para caso deseje fazer uma refeição rápida não melhorava a situação. Ainda assim, a coragem de Oyama era algo inquestionável. Mesmo Aramil dizendo constantemente que o que Oyama demonstrava era apenas a burrice de um primata que levou pancadas demais na cabeça, todos consideravam a coragem do monge um valor absolutamente inquestionável. Oyama tinha o hábito de ridicularizar pessoas vaidosas, preguiçosas ou arrogantes, mas sempre demonstrava respeito por aqueles que lutavam com honra e buscavam se tornar mais fortes, inclusive se dispondo a treinar todos aqueles que demonstrassem interesse.

Algo que particularmente gosto nesses personagens é que, ao final de suas aventuras, eles se tornaram mais sábios, mas não deixaram de ser quem eram. E como os bons personagens de uma campanha são os NPCs da próxima, é possível aproveitar esses personagens e valorizar seus feitos e legados indefinidamente (este é um processo muito gratificante aos olhos do jogador que os criou). Assim, como jogadores, não devemos ter receio de criar personagens com defeitos que os prejudicarão, pois esse aprendizado pode enriquecer muito a história de todos. E como mestres, devemos permitir que os personagens cresçam lidando com as consequências de seus atos e modo de ver o mundo. Isso, ao meu ver, é a “evolução” que realmente vale à pena na mesa de jogo, e que devemos estimular sempre que possível.

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